quarta-feira, 20 de junho de 2012

Momento final. Tempo de avaliação e de gratidão. Rute 4


SEGUNDA-FEIRA, 9 DE MAIO DE 2011


O último segmento do livro de Rute a ser analisado é pequeno – 4.13-22. No entanto, como final do livro, é de importância fundamental para a compreensão do drama das viúvas e de seu parente resgatador.

Os personagens principais não são sujeitos do discurso no texto. Ou fala-se deles, ou então fala-se sobre eles. Ocorre o mesmo que se deu no início do livro (1.1-7). No primeiro capítulo foi feita uma descrição dos cenários, personagens e dramas vividos para somente depois introduzir os personagens em ação. Agora, no final, há semelhante estratégia. Com exceção do v. 13, que relata a união entre Boaz e Rute, os demais versículos silenciam a respeito das atitudes dos personagens. Suas ações e falas ficam no passado. Agora é tempo de avaliação final.

Para tanto, duas vozes são ouvidas. A do narrador (v. 13, 16, 18-22) e a das mulheres (v. 14-15, 17). De modo alternado elas relatam o resumo final da história. Embora os diálogos se constituam no ponto central do livro, a presença narratorial também tem sua importância e se manifesta no enredo de modo claro e sem grandes envolvimentos pessoais. Quando necessário, ressaltou o sofrimento (1.3-5), e quando a situação foi alterada, relatou os resultados (2.3, 23; 4.13). Quanto a isso, o narrador acompanha o desenvolvimento da história. Não nega, como poderia fazer com pseudoargumentos teológicos, que o sofrimento atinja as protagonistas, mas, ao mesmo tempo, relata a alteração desse quadro. É isso que ocorre no final. De modo sintético o narrador dá a conhecer ao leitor que, de fato, Boaz cumpriu a promessa e tomou Rute como esposa, tiveram um filho (4.13) e ele foi o consolo de Noemi (v. 16). Como última informação, apresenta a descendência de Boaz, cujo ápice é o futuro rei Davi. 

Central neste trecho é a voz das mulheres, que já havia aparecido anteriormente (1.19). Naquele momento, demonstrando surpresa e assombro pelo estado em que se encontrava Noemi. Na segunda ocorrência, a situação é inversa. Elas louvam a Deus por trazer à anciã um neto que será, ele mesmo, seu resgatador (4.14) e definem, de modo que não feito ainda, qual foi o papel de Rute para com ela: não apenas aquela que lhe dá um neto e a posteridade da família, como também a realidade inconteste de que isso se acontece porque ela “a ama”, e “é melhor do que sete filhos”. Eis aqui uma revelação feita pelo narrador por intermédio da boca da mulheres. 

Não se nega a perda terrível sofrida por Noemi. Isso está claro em todo o livro. Mas o que vai se revelando, inicialmente de modo implícito, mas cada vez mais de forma concreta mediante as ações de Rute é que, embora ela não ocupasse o espaço emotivo daqueles que faltavam, ela não apenas assumiu o papel deles, como sua ação é interpretada pelo coro de mulheres como uma ação ideal (“sete filhos” era tido como o número ideal de filhos. Cf. 1 Sm 2.5 e Jó 1.2). Ou seja, Noemi não ficou desamparada, mas teve, em lugar daqueles que se foram, alguém à altura para substituí-los, como o enredo deixa claro. 

Último dado a ser comentado a respeito da participação do coro de mulheres é a designação do nome para o filho de Rute/Boaz (4.17). Isso era incomum em Israel. Ou as mães atribuíam nome aos filhos (cf. Is 7.14) ou os pais (Lc 1.62-63). Por que as mulheres tomam tal iniciativa? Minha hipótese é que essa é uma estratégia do narrador. Ao invés dele mesmo descrever a cena, ou de apresentar os pais nomeando o recém-nascido, ele segue a estratégia de indicar acontecimentos importantes a partir de terceiras pessoas. Isso significa que o nascimento e o nome da criança são autenticados pela constatação daqueles que estão em volta, de que, de fato, esse é um acontecimento especial. 

A criança será avô do futuro rei Davi. Esse é o ponto alto. E mostra como uma família sai da desgraça total (sem terra, sem dinheiro, sem descendentes) para se tornar aquela que traria ao mundo o principal e mais importante rei que haveria de nascer em Israel.

Bem, podemos pensar em algumas conclusões.

Uma delas foi estabelecida logo acima. O livro de Rute nos mostra que, para aqueles que creem e confiam em Deus, mesmo quando ele parece ser o inimigo, como julgou inicialmente Noemi, nunca é o fim da linha. Sempre há e haverá uma porta aberta, uma possibilidade de resgate e libertação, um razão pela qual orar e crer.

Outro aspecto muito belo da história é a estratégia de sua apresentação. Os diálogos são centrais, e as avaliações são feitas, não pelos próprios personagens, mas por terceiros. Isso revela que o mais importante não é o que pensamos de nós mesmos ou como nos avaliamos, embora a necessidade de consciência ética e de compromisso com Deus sejam importantes. O que vale é o que fazemos de concreto e que pode ser visto e avaliado pelos que nos veem. É aí, nas situações da vida, que nosso testemunho é avaliado e provado.

Um último dado para reflexão é a importância da família. Não digo isso em uma perspectiva moral, embora ela seja importante, mas de unidade social. Noemi e Rute sobrevivem apenas por que resolvem permanecer juntas. Caso contrário, a história teria acabado no primeiro capítulo, com Rute voltando para casa e Noemi, provavelmente, morrendo. É a família que nos tem e nós a temos. Ao final, esse é o fato mais importante. Mesmo em termos da presença na sociedade. E não falo mais acerca de sobrevivência. Falo de cidadania, de valores, de visão de mundo. Somos nós, famílias, que formamos a base da sociedade. Embora a nossa seja muito diferente daquela em que viveram os personagens do livro de Rute. Eis aí nosso desafio. Não a tentativa de uma volta saudosista de um tempo que não mais existe, mas a vivência de valores cristãos em um mundo em transformação. Mesmo o rei mais importante da história de Israel somente tem sentido se inserido nas lutas e vivências da pequena família de Noemi/Rute/Boaz. 

Um questionamento, quase a título de provacação. Não passa imperceptível o papel da mulheres em Rute. Temos duas protagonistas e, embora Boaz também ocupe papel central, ele é quase que manipulado pelas mulheres, embora sua bondade inata sempre esteja presente. E temos o coral de mulheres ressaltando e reafirmando aspectos centrais para a história. E tudo isso em um mundo patriarcal. Vale a pena refletir sobre isso!

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