terça-feira, 19 de junho de 2012

Promessa, lei, fé – 3.15-29


No último post comentei o argumento escriturístico pelo qual Paulo afirma a atualidade da bênção de Abraão a todos os cristãos, mediante o Espírito Santo, ao mesmo tempo em que declara a impossibilidade da Lei trazer tal bênção.


No texto que analisamos agora ele apresenta maiores detalhes, buscando dirimir qualquer dúvida que ainda possa existir. Há também uma preocupação em não negar o papel histórico da lei. Tal tema é sensível, uma vez que a Lei era central para os judaizantes opositores de Paulo na região da Galácia.

O texto pode ser dividido em três segmentos. No primeiro (3.15-18), Paulo faz uso da lógica humana (“falo como homem”, v. 15) para desenvolver sua argumentação. No segundo (3.19-25), ele abre um parêntese para esclarecer o papel da lei. Por fim, faz uma aplicação da discussão à vida dos cristãos gentios (3.26-29).

O uso da lógica na primeira parte está relacionado com o campo das leis. Provavelmente a escolha se dá por ser uma terminologia conhecida entre os membros do império romano e que se torna uma base com boa dose de segurança para o desenvolvimento da argumentação. O arrazoado começa de forma um tanto tranquila para ser intensificado no bloco seguinte.

Paulo se utiliza da terminologia referente a testamentos. Embora o termo grego usado no v. 15 seja diatheke (aliança), normalmente traduzido como “aliança”, como faz Almeida Atualizada, a palavra também significa “testamento”. Nesse sentido ela foi usada várias vezes por Josefo em seus escritos (cf. Longenecker, Richard N. Galatians, Word Biblical Commentary, v. 41, Gl. 3.15, CD). 

Há entre os comentaristas uma discussão a respeito da afirmação de que “[...] uma aliança/testamento [...] uma vez ratificada, ninguém a revoga ou acrescenta algo” (v. 15). A questão é que a legislação romana permitia a alteração dos conteúdos de um testamento, desde que fosse da vontade de seu proponente. Diante disso, parece que Paulo fundamenta sua lógica na ideia de que, caso não seja da vontade do testador, ninguém pode alterar o testamento.

A lógica inicial é que as partes contratantes eram Deus, Abraão e Jesus Cristo, “o” descendente (v. 16). A interpretação paulina de Gn 12.2-3, 7; 13.15-16ss soa estranha, uma vez que o termo singular “descendência” que ocorre em Gênesis, do qual Paulo deriva “descendente”, claramente diz respeito à coletividade, ou seja, a muitos. Mas Paulo aproveita-se da gramática para gerar um sentido espiritual que identifica o descendente com Jesus Cristo. Isso é fundamental para ele. Afinal, somente as partes envolvidas no testamento – Deus, Abraão e Jesus Cristo – poderiam revogá-lo, o que obviamente não ocorre. 

A consequência disso, destacada pelo apóstolo é que, a Lei, por mais importante que fosse, não poderia alterar o testamento. Até mesmo por que veio quatrocentos e trinta anos depois da promessa a Abraão (v. 17).

Paulo finaliza sua argumentação com a conclusão: a herança não provém da Lei, mas da promessa (v. 18). De que herança ele fala? Provavelmente de todo o legado que o exemplo da fé de Abraão deixou para as gerações futuras. Esse é o seu testamento. E a origem da herança é a promessa feita por Deus a ele. A Lei não conseguiu fazer isso, lembra o apóstolo. Ele repete, em outros termos, o que já disse em 3.14, e a ênfase visa os judaizantes, segundo os quais a herança abraâmica era, principalmente, a circuncisão, sinal da aliança e, portanto, necessária a todos quantos creem. 

Bem, uma vez que ele novamente fala de modo tão negativo sobre a Lei, sente-se na obrigação de fazer um esclarecimento a esse respeito. Este é o segundo bloco do texto (3.19-25). Parece que seria lógico perguntar: “Qual, pois, a razão de ser da lei?” Visto que ela era tida pelo judaísmo como o fundamento sobre o qual eles construíam sua relação com Deus, como povo da aliança. As palavras de Paulo eram chocantes para qualquer judeu piedoso, e também para os cristãos judaizantes. Ele julga necessário fazer alguns esclarecimentos.

O primeiro é que a Lei foi “adicionada”, acrescentada. Novamente um choque. Não era dessa forma que ela era concebida. Mas para Paulo ela surgiu de uma necessidade. Ela foi adicionada por causa das “transgressões” do povo. A ideia é que, apesar da promessa e da herança, os israelitas se envolveram em práticas contrárias ao que Deus desejava. Isso tornou necessária uma atualização, um complemento à herança que a viabilizasse. Mas quando viesse o descendente, a quem a promessa foi feita, esse acréscimo não faria mais sentido e deveria ser retirado. 

Por isso mesmo Paulo pode responder a pergunta que talvez ainda subsistisse: “É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo nenhum!” (v. 21). Claro! Se ela surgiu como complemento, como viabilização da herança em outro momento, ela está ao lado, ela ajuda a promessa, não sendo nunca sua opositora. 

Ele lembra, como fará na carta aos romanos, que a Lei explicitou e tornou evidentes os pecados. De modo generalizante, o apóstolo afirma que a “Escritura”, ou seja, o Antigo Testamento, encerrou tudo sob o pecado para que a promessa se tornasse válida mediante a fé em Jesus (v. 22). 

Mas, historicamente, antes da manifestação da fé, a Lei foi uma espécie de tutor (v. 23). Ela serviu de “aio” (paidagogos, em grego). Talvez a melhor tradução a partir do termo grego seja professor, instrutor. A Lei exerceu a função de cuidar dos fieis e conduzi-los a Cristo. Esta é uma imagem muito bela e positiva para a Lei. Mas, uma vez vindo Jesus e a fé, a o instrutor não é mais necessário (v. 25). 

No v. 26 tem início a conclusão do bloco. Se a Lei é um professor, um instrutor, somente Jesus nos torna filhos de Deus (v. 26). Obviamente esta é uma categorização que não seria bem recebida pelos judeus e judaizantes, que usavam uma série de classificações para determinar quem era espiritual e fiel a Deus.

Digno de nota é a mudança do pronome. Se nos versículos anteriores Paulo utilizou a primeira pessoa do plural – “nós” (v. 23-25), portanto, incluindo-se naquilo sobre o que escrevia, agora ele altera para a segunda pessoa do plural – “vós”. Portanto, se exclui de sua argumentação, aplicando aquilo que fala diretamente aos gálatas. Isso significa que não se aplica a ele o que é dito? Não seria ele filho de Deus? Não teria sido batizado em Cristo? Claro que sim! Mas a estratégia de se colocar de lado, para dar destaque aos leitores, busca tornar mais clara a aplicação a eles. 

Ele quer deixar claro que os gálatas não estão mais sob os cuidados de um tutor, visto terem, pela fé, adquirido a maioridade espiritual. Eles se relacionam com Deus como filhos (v. 26). Sinal inconfundível disso foi terem sido batizados em Cristo (v. 27). A decorrência é que não existem mais categorizações e diferenças entre pessoas (v. 28), elemento central para a religião judaica, e um dos critérios pelos quais os cristãos judaizantes estavam tentando convencer os gálatas a respeito da necessidade da Lei. Agora, em Cristo, e somente por intermédio dele, eles se tornam descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa (v. 29).

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