quarta-feira, 20 de junho de 2012

PARA REFLETIR


QUINTA-FEIRA, 28 DE ABRIL DE 2011

“Trgo, do disco Dia Dorim, Noite Neon (1985). Nessa canção, Gil faz sua leitura crítica da modernidade capitalista, defendendo sua utopia de um mundo artisticamente reencantado. Não me interessa, porém, interpretar Gil, mas, sim, voltar ao texto de Rute e suas paixões, inspirado pela inspiração do ex-ministro.


Notemos os termos relativos à posteridade no capítulo 4: “para perpetuar o nome do morto sobre seu patrimônio” (v. 5); “para perpetuar o nome do falecido sobre sua herança e para que o nome do falecido não desapareça do meio de seus irmãos nem da porta de sua cidade” (v. 10); “e que graças à posteridade que Iahweh te vai dar desta jovem, tua casa seja semelhante a de Farés” (v. 12); “que seu nome seja célebre em Israel” (v. 14); e “esta é a posteridade/descendência de Farés” (v. 18).

Em um dicionário, a posteridade é descrita primariamente como descendência, ou como um tempo futuro. Enquanto paixão é descrita como “glória futura; celebridade, imortalidade” – ou seja, a posteridade tem a ver com a atitude da pessoa diante da ausência, uma atitude mais marcada pela esperança e segurança do que pela aflição e insegurança. Em culturas nas quais a honra da pessoa vale tanto quanto, ou até mais do que o patrimônio econômico, a possibilidade da extinção do nome é um perigo, uma ameaça constante. Contra a extinção do nome e o fim da honra se erige a expectativa da posteridade, da continuidade do nome, da própria existência. Em outras palavras, a expectativa positiva de descendentes gera a paixão positiva da posteridade, a esperança de ter o nome e o patrimônio perpetuados. A posteridade, tanto econômica como existencial, depende da descendência. Os filhos garantem a continuidade, a permanência do nome e do patrimônio (nos versos 5 e 10 usa-se o verbo qûm, firmar, estabelecer, confirmar, fazer durar); nos versos 2 e 18 trata-se da semente e das gerações futuras e no verso 14 trata-se do verbo “proclamar”, ou seja, trata-se de que o nome de Farés (Peres) continue a ser mencionado, falado em Israel.

Em culturas como a nossa, fortemente marcadas pelo presenteísmo de cunho capitalista, o futuro é intensamente vinculado ao presente, de modo que a expectativa de posteridade é substituída pela ambição (em dicionário descrita como “forte desejo” ou “anseio veemente”), posto que a posteridade é vinculada exclusivamente ao patrimônio – é este que dura, nós, humanos, morremos. Nosso nome somente pode perdurar se a ele estiver associada uma riqueza, uma realização objetiva. É a isto que Gil faz menção com sua frase lapidar “trocar o logos da posteridade, pelo logo da prosperidade”. Uma é paixão solidária, intersubjetiva. Outra é paixão conquistadora, objetiva. Quando a posteridade não é apenas objeto, mas valor cultural, desenvolve a paixão de uma permanência existencial, humana, intersubjetiva. Quando, porém, a posteridade é mero objeto, valor monetário, desenvolve-se a paixão de uma ansiedade objetual, um querer-ter desmesurado que subordina o querer-ser.

Não seria o sucesso da “teologia da prosperidade” um sintoma da negação da posteridade? A ambição no lugar da reputação? O patrimônio no lugar da existência?

TERÇA-FEIRA, 26 DE ABRIL DE 2011

Descendência – a bênção final. Rute 4

Até este momento percorremos a saga de Noemi e Rute através da perda de bens e familiares em terra estranha, e o retorno para Belém em total desamparo. A partir daquele momento, principalmente pela estratégia de Noemi e a bondade de Boaz o destino das mulheres começou a ser alterado. Elas conseguiram sustento e a promessa de resgate da parte de Boaz.

O capítulo 4 coloca em prática aquilo que Noemi havia dito de Boaz (3.18). Segundo ela, ele não descansaria até resolver o problema do resgate. O narrador não nos dá a conhecer de onde vem a convicção da anciã a respeito do parente. Mas ela está certa, nesse mesmo dia ele procura resolver a questão do resgate (4.1).

Boaz já havia informado Rute que havia um resgatador mais próximo de Noemi, ao qual caberia o direito do resgate (3.12). Sob ele estaria a responsabilidade de resgatar a terra da parente e de gerar descendência a Rute (Dt 25.5-10). Por isso, Boaz se dirige para a porta da cidade, local onde os relacionamentos sociais dos mais diversos níveis se davam (4.1), chama testemunhas e o resgatador, apresentando-lhes a situação. Este aceita resgatar a terra de Noemi (4.4), possivelmente vendida antes da ida para Moabe, e que agora ela pretendia reaver, mas sem ter condições para tanto. Entretanto, quando é notificado a respeito da responsabilidade de gerar um filho para Rute, ele rejeita sua responsabilidade, alegando que tal atitude prejudicaria sua herança (4.5-6). Possivelmente o que estava em jogo era a legislação mosaica que previa a possibilidade de um parente receber a herança de outro sem descendentes imediatos (Nm 27.1-11). Portanto, receber Rute significava ter sobre si a sombra de ter que dividir suas posses com outra pessoa, o que obviamente geraria problemas familiares.

Para formalizar sua recusa, o resgatador executa um ritual antigo e desconhecido dos leitores/ouvintes, visto que o narrador sente necessidade de explicá-lo (4.7-8). Boaz, então, vê-se liberado para assumir Noemi e Rute. Ele readquire os bens de Noemi e casa-se com Rute para suscitar descendência a Malom (4.9-10). 

As testemunhas e o povo, que havia se ajuntado à porta, proclamam uma bênção para a nova família, desejando-lhes felicidade e prosperidade. A introdução desse grupo de expectadores desempenha a função de confirmar e de realçar publicamente o que havia ocorrido. Dessa forma, a imagem inicial de sofrimento que as duas mulheres deram a conhecer aos moradores de Belém (1.19) é substituída, ao final, pela imagem de bênção. 

Situação familiar resolvida, descendência prometida, o clímax da história se efetivará no bloco final (4.13-22). Tais versículos serão comentados no próximo post.

ocar o logos da posteridade pelo logo da prosperidade” – Rute 4

O título deste post é extraído de uma canção de Gilberto Gil, cujo título é Logos versus Lo

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