quarta-feira, 20 de junho de 2012

O mistério da mancha vermelha


QUARTA-FEIRA, 9 DE FEVEREIRO DE 2011


Este título parece de texto policial. Mas logo ficará claro ao leitor. Ele é um artifício para mostrar explicitamente o que se encontra implicitamente em todas as leituras. Após as introduções ao gênero textual da narrativa feitas por Júlio e por Leonel, quero mostrar que narrativa é algo tão marcante na cultura humana que sobrevive mesmo em linguagens que quebram o paradigma da sucessão espácio-temporal. E exatamente por não considerarem este paradigma (pelo menos não da forma da narrativa tradicional), por traduzirema narrativa a outro esquema semiótico é que elas são fundamentais para a interpretação. Digo fundamentais, não acessórias. Em algum momento neste blog comentei que há signos chamados discretos e os icônicos. Nada de terminologia complicada. Discreto é o signo que se apresenta em sequências, como no caso da palavra escrita. Apreendemos no ritmo da leitura. A ação da narrativa se reproduz de alguma maneira em nossas mentes na medida em que lemos. A narrativa vai acontecendo em nossas mentes conforme estes signos são decifrados. No caso dos icônicos é diferente. Eles se apresentam de uma vez. Imagem condensa espaço e tempo. Privilegia espaço, mas o tempo também está lá. E aí é que entra sua riqueza e contribuição para a interpretação: como na imagem tudo se apresenta ao espectador de uma vez, cabe a ele reconstruir em um grau diferente que na narrativa a temporalidade. Notem que falamos de "em um grau diferente". A imagem não é "mais verdadeira". Como se pudéssemos ver "como era", ainda que nos passe esta impressão na apreensão vulgar. Notem: na narrativa escrita temos que recriar as feições, cores, geografias, gestos. Eles estão no texto apenas em parte, como que sugeridos. Cabe ao leitor preencher seu texto de imagens. Na imagem propriamente dita, digamos, num quadro, as cores, feições, paisagens, etc nos são dados, mas não a sequência de acontecimentos, a sequência de falas. Tudo nos é dado de forma densa e sobreposta. Nos dois casos temos que reconstruir ou, dizendo de forma mais apropriada, construir com o narrador. Em sentido estrito o texto ou a imagem não dizem nada. Se eu não imaginar o que o texto sugere, sua narrativa não se efetiva em minha mente. Se eu não ampliar narrativamente o que uma imagem traz condensadamente, não há narrativa. Isso é assim pelo menos na leitura vulgar, de todo o dia. Há formas de texto e de pintura que pretendem chamar a atenção exclusivamente para o que se apresenta ao leitor/espectador. Mas este tipo de texto e de pintura perde muito em figuratividade.

Vamos exercitar um pouco de leitura visual de núcleos narrativos do livro de Rute. Apresentarei agora uma imagem do livro. Ela servirá para notarmos a importância da cultura visual para a compreensão dos textos bíblicos na história da recepção. Mas também nos proporcionará um experimento para nos sensibilizarmos com o papel ativo do leitor espectador diante de texto e de imagem. 

Veja com muita atenção esta imagem:




Aqui temos uma representação do encontro de Rute com Boáz. Foi pintada por Chagall. Mas não quero dizer agora nada sobre ele. Nosso exercício não é sobre história da arte ou sobre o gênio do artista, mas sobre formas de recepção do texto bíblico na cultura visual. 
Se você (como a maioria de nós e, se for de origem evangélica, mais ainda) não sabe o que fazer ao se defrontar com imagens, faça a si mesmo as seguintes pertuntas:
- Que lugar na imagem ocupam as pessoas e os objetos (direita-esquerda, centro-periferia, acima-abaixo)?
- Onde fica projetada luz e há destaque por meio de cor?
- Observe os gestos. As feições.

É por meio destas coordenadas que a imagem reorganiza (ou: traduz) as sequências de tempo e espaço da narrativa.
Veja que mesmo espaço, que é o elemento forte da imagem, é representado de forma diferente do espaço do texto.
Mas se o querido leitor se pergunta agora. Tudo bem. Excelente introdução (no caso de que a ache mesmo!), mas e a imagem, o que significa? Pois bem, saiba que não cederei à tentação de dar agora  a minha leitura. Ou, dito de diferente maneira, não estragarei o seu experimento de matutar por uns bons minutos diante da imagem, de ser guiado por ela ao texto biblico.
Até breve!




TERÇA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO DE 2011

Nossos olhares

Assino embaixo o texto do Leonel. Quero, a partir dele, dar uns palpites aproveitando algumas expressões por ele utilizadas em seu post sobre a teoria literária.

Sim! Nós não queremos fazer exegese histórica, ou "historicista". Nós queremos ler textos, nos encantar com textos, pois os textos são janelas para a vida sofrida vivida nos tempos "bíblicos". Nós queremos nos encantar com esses textos, porque textos são espelhos onde nos defrontamos com nossa aparência verdadeira, que ora nos enamora, ora nos apavora. 

Onde escrevemos "histórica" e/ou "historicista", leia-se exegese "científica". Uma prática que nasceu mais ou menos bonita, como todo bebê, e logo se tornou um monstrengo pior do que o monstro que ela tentou matar e substituir. Desracionalizada a tradição da Igreja, demonizadas a tipologia e a alegoria, destronada a autoridade do Clero. Liberdade, diríamos. Liberdade, talvez até tenhamos conseguido. Rapidamente, porém, a tradição Acadêmica se torna um ferrolho tão gigantesco quanto A Tradição, seja ela inserida na Palavra de Deus, seja antropologizada nas confissões. Imediatamente se diviniza o método, a ciência, o moderno modo de abolir o antigo e fazer valer o novo, que envelhece tão inesperadamente quanto Benjamin Button. Destronado o clero, o trono do poder da Verdade é ocupado pelos venerandos Sábios cujo discurso promete Liberdade, mas entrega uma bela Jaula de Ferro (weberiana metáfora) a quem se dispõe a ler o texto, o estranho texto dos livros da Bíblia.

Sim! Não fazemos exegese "crítica". Não só porque aceitamos a divisão disciplinar do mundo acadêmico e nos submetemos humildemente à periferia do saber. Não queremos fazer exegese "crítica" que se coloca acima da Crítica. Nosso jeito de fazer crítica é outro. É, primeiramente, auto-crítica. Talvez seja exclusivamente auto-crítica, pois quem somos nós para criticar o Outro, a Outra, os outros e as outras que, teimosamente, como nós, continuam a ler textos antigos, amarelados, envelhecidos. Vinho... Nossa crítica é outra, é a crítica de quem bebe a taça de vinho lentamente, sorvendo cada gota, deixando-se embriagar, deixando-se transcender, deixando-se transportar para mundos fantásticos, míticos, impossíveis.

Mas também não fazemos exegese literária, nem exegese semiótica, nem estudos da recepção. Nossas teorias são apenas modos de olhar, visadas, pontos de vista - por isso, vistas de um ponto, dois pontos, três pontos. Pra falar a Verdade mesmo, acho até que nós não fazemos mais Exegese. Desaprendemos. Tornamo-nos ignorantes. Somos apenas leitores, contempladores. Não temos ciência. Temos, apenas, olhares.

SEGUNDA-FEIRA, 7 DE FEVEREIRO DE 2011

Teoria Literária e o livro de Rute

Após a apresentação semiótica do Júlio, trago algumas informações a respeito da Teoria Literária e de sua aplicação à análise de textos bíblicos, de modo particular no estudo do livro de Rute.

Antes, certas especificações a respeito do que não pretendemos ou pelo menos não será central para as discussões sobre Rute neste blog.

Não queremos discutir o livro a partir de uma perspectiva historicista. 

Embora o livro se vincule a determinado momento da história de Israel, apontando para indivíduos específicos, nosso objetivo não é resgatar esse momento histórico a partir do texto bíblico. 

Isso porque, embora o texto aponte para a história e se construa a partir dela, ele a transcende. Em outras palavras, ao apresentar determinados acontecimentos o texto bíblico é trabalhado para produzir certo sentido e objetivo junto aos leitores/ouvintes.

Portanto, a história não é negada nem esquecida, mas colocada como um "meio" para que determinados objetivos retóricos se concretizem.

Também não queremos discutir o livro de Rute em uma perspectiva crítica. 

Isso significa que não é nosso objetivo vasculhar detalhes históricos e arqueológicos, a partir de uma perspectiva crítica, que nos levem a confirmar a maior veracidade ou não do texto em relação a seu contexto histórico. Não que essa abordagem seja equivocada, mas ela se presta melhor ao trabalho do historiador de Israel do que do intérprete de textos.

Do que foi colocado acima surgem questões que demandam a explicitação do uso da Teoria Literária.

Na realidade, será usada uma vertente dela, a Teoria Narrativa, visto que o livro de Rute é um texto narrativo, no primeiro e básico sentido utilizado pelo Júlio em seu post.

Falar em narrativa significa falar de um texto construído com elementos como personagens, cenários, tempo(s), enredo e narrador. O narrador é o elemento central, visto que ele trabalha a partir dos personagens, cenários, tempo(s) para criar o enredo (melhor do que o termo "história"). O modo como o faz é que dá o tom e a especificação de seu texto em relação aoutros. 

Falar em narrativa significa também reconhecer que um autor escreve um texto, incluindo os bíblicos, com objetivos específicos. Ele não escreve (e a escrita era algo difícil e caro nos tempos de Israel) apenas por escrever. Utilizando uma terminologia hermenêutica/teológica, o autor possui um "querigma" (mensagem) a ser proclamada. E, para tanto, ele faz uso dos elementos teóricos já apresentados. 

Uma questão ligada ao estudo de textos antigos, como o livro de Rute, é a pergunta se os autores naqueles períodos longuínquos tinham conhecimento de Teoria Literária. 

A pergunta está um pouco anacrônica. Como tal, obviamente eles não a conheciam. Mas a perspectiva pela qual pensamos uma teoria deve ser alterada. Uma teoria pode ser uma sistematização que nos ajude a pensar algo, ou a explicitação de como pensamos algo. Nos textos narrativos da bíblica aplica-se o segundo conceito. Compor uma história usando personagens, lugares, tempos em que eles ocorrem, e escolhendo uma voz para contá-la é algo que acompanha o ser humano em sua história. A Teoria Literária apenas os especifica didaticamente e procura explorá-los em seus limites.

Pensando na aplicabilidade em Rute, devemos nos perguntar: Quem conta a história? Ou seja, quem é o narrador? Como ele narra? 

Quais são os personagens? Quem ou quais são os personagens centrais? Quais os secundários? Como eles contribuem para que a história progrida?

Quais sãos os cenários? Onde o enredo se desenvolve? Há mudança de cenários? Isso é relevante?

Em que período a história é situada? Isso é importante? Há mudança de tempo?

Por fim, como o enredo é construído a partir dos componentes citados anteriormente?

Essas são perguntas básicas que nos guiarão no estudo de Rute e a partir das quais o livro já pode ser pensado.

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