terça-feira, 19 de junho de 2012

A prova escriturística – a fé de Abraão – 3.6-14


TERÇA-FEIRA, 20 DE SETEMBRO DE 2011


Como disse anteriormente, Paulo está desenvolvendo a sessão denominadaProbatio, isto é, o momento em que os argumentos são apresentados e a discussão assume um tom mais intenso.

Se no texto anterior Paulo i

niciou seus argumentos com um apelo à experiência gálata, agora ele parte para motivos teológicos, utilizando, neste bloco, o argumento bíblico. Cabe ressaltar que este passo é escolhido cuidadosamente. Paulo coloca-se no terreno de seus opositores, que interpretavam as Escrituras enfatizando a validade da lei para os cristãos. Paulo usará as mesmas Escrituras para dizer exatamente o contrário. 

O texto pode ser dividido em dois blocos e uma conclusão. O primeiro, do v. 6 ao 9, utiliza o exemplo de Abraão para discutir a justificação pela fé. O segundo, do v. 10 ao 13, discute a presença da Lei na vida cristã. E a conclusão, no v. 14, relaciona as discussões anteriores com o Espírito Santo.

O ponto de partida é a vida de Abraão. O foco é sua experiência de fé e a decorrência dela, que será contrastada com a fascinação dos gálatas pela vida sob a lei.

Poder parecer, em um primeiro momento, que o apóstolo utiliza o exemplo de Abraão para ressaltar a justificação pela fé. Não somente isso. Ele utiliza o exemplo do pai da fé para enfatizar a presença e ação do Espírito Santo entre seus leitores (v. 14). Portanto, há uma junção não muito comum entre Abraão e Espírito Santo neste texto.

Paulo inicia o primeiro bloco com uma afirmação: “É o caso de Abraão, que creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça”. O tema da justificação pela fé já foi abordado anteriormente (cf. 2.16). Mas agora ele retorna em nova conexão. A fé que leva à justiça é apresentada como um modelo vivido por Abraão, e, de tal forma, conecta historicamente todos os que são salvos pela fé com o ancião (v. 7). Desse modo, aqueles que creem são filhos de Abraão. Principalmente os gentios, para os quais o evangelho foi anunciado já em Abraão (v. 8). Não apenas isso, mas destaca que a bênção experimentada pelo patriarca recai sobre os que creem (v. 9).

Obviamente a utilização de Abraão por Paulo tem como objetivo enfatizar seu ato de fé em lugar do destaque sobre a circuncisão pactual firmada com ele (cf. Gn 17) e exigida aos gálatas pelos judaizantes (5.2). Do mesmo modo, o apóstolo pretende desviar o foco da lei mosaica mediante o argumento histórico da fé que se manifestou anteriormente à lei, e que, por consequência, não pode ser anulada por ela (cf. 3.16-17). O ato de fé, que torna Abraão justo, não apenas precede seus demais atos, como a promulgação da circuncisão, mas também dá sentido a eles. Por isso mesmo o apóstolo declara: “Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão” (v. 7). Significa dizer, em outras palavras, que a circuncisão não torna ninguém filho de Abraão, como argumentariam os adversários de Paulo.

De que forma Paulo argumenta a respeito da filiação abraâmica pela fé? Ele parte da expressão de Gn 12.3: “[...] em ti serão benditas todas as famílias da terra”, citada no v. 8b, para confirmar o anúncio da justificação aos gentios (v. 8a). Desse modo ele delimita cristologicamente a bênção de Abraão. A conclusão é que “os da fé são abençoados com o crente Abraão” (v. 9). Abraão, que para o judaísmo é o modelo de obediência à Torá, torna-se para Paulo o modelo de fé para os cristãos.

O segundo bloco, de caráter negativo, volta-se para as obras da lei. Paulo trabalha com um pensamento binário. Se há os que estão caminhando sob a fé, seguindo os passos de Abraão, os demais seguem o quê? A Lei. Nesse caso, se os primeiros são abençoados, os segundos, pela lógica, são amaldiçoados (v. 10). Parece ser um pensamento simplista e radical. Paulo, no entanto, novamente toma as Escrituras como prova para o que diz. Cita Dt 27.26 para lembrar que aquele que tenta praticar o a Lei e não consegue é maldito. Isso se aplica tanto a judeus quanto a cristãos judeus. Poderia incluir também os gálatas. 

Paulo desenvolve o argumento a partir de uma lógica. Se a justificação vem pela fé, então não é necessário nenhum outro caminho. Portanto, a lei não justifica ninguém (v. 11). Ele amplia e aprofunda o argumento afirmando que a Lei não pode salvar por não provir de fé (v. 12). Agora não temos apenas uma questão de possibilidade, mas de oposição. Fé e Lei são opostos. Abre-se, aqui, espaço para discutir temas relacionados com a Nova Perspectiva sobre Paulo, particularmente com respeito ao conceito de Lei e de sua função no cristianismo paulino. O Júlio já abordou esse tema em posts de final de maio, portanto não julgo necessário voltar a eles.

No v. 13 Paulo apresenta o caminho para escapar da maldição a que todos que vivem sob a Lei estão sujeitos – Jesus Cristo. Ao fazê-lo há dois propósitos. O primeiro é evidenciar a impossibilidade de viverem sob a Lei aqueles que professam Jesus Cristo. Jesus libertou os cristãos da maldição da Lei e da própria Lei ao cumprir a Lei, morrendo sobre a cruz. Portanto, toda a Lei foi cumprida por ele, não restando nada para os cristãos. Querer viver sob a Lei significa rejeitar a plenitude do sacrifício de Jesus Cristo. O segundo objetivo é preparar a entrada do Espírito Santo na discussão (v. 14). Deixa-se a maldição e caminha-se para a bênção.

A conclusão se constrói a partir do que foi dito anteriormente. A bênção para os gentios, considerada como a justificação pela fé (v. 7-9), agora é expandida indicando que a fé também conduz ao recebimento do Espírito Santo (v. 14). Essa é a segunda grande bênção para o cristão. A ênfase na fé como base para o recebimento do Espírito coloca-se como uma crítica aos judaizantes que entendiam o acesso ou a plenitude do Espírito como algo que se conseguiria mediante as obras da Lei (cf. 3.2). Portanto, Paulo está retomando o tema da perícope anterior. Nela, apelou para a experiência dos gálatas. Não restam dúvidas que eles receberam o Espírito pela pregação da fé (3.2). Agora, esse mesmo fato é destacado a partir do ângulo do testemunho escriturístico. E Paulo o faz com um destaque ainda maior: A bênção para todos os povos, dada a Abraão, chega aos gentios através de Jesus Cristo e se consolida e plenifica com a presença do Espírito em suas vidas.

A título de reflexão alinhavo alguns pensamentos. 

Na análise do texto anterior já escrevi um pouco sobre a possibilidade de hoje vivermos sob a Lei. Pensando no texto acima, julgo que podemos avançar a reflexão. O mais terrível da vida sob a Lei não é apenas o engano de nos sentirmos seguros e a experiência, muitas vezes oculta, de nos decepcionarmos por não conseguirmos corresponder aos padrões da Lei. O maior e principal problema é que a busca pela Lei inviabiliza a vida sob o Espírito Santo. Eles são incompatíveis. Todos os cristãos vivem esse dilema. Os pentecostais, que dão centralidade ao Espírito, o reprimem com suas muitas regras e normas que podem ser de cunho comportamental como vestes, vocabulário; ou mesmo espirituais, como a tirania da evidência de dons espirituais, de falar línguas, de exercitar ou receber curas. Os tradicionais, por sua vez, colocam o Espírito em segundo plano quando enfatizam questões morais, que se tornam moralistas, como comportamentos sexuais, que são violados às ocultas, questões de saúde, como não fumar, não beber, ao mesmo tempo em que se submetem aos juízos deste mundo, buscando uma estética de beleza masculina e feminina que nada tem de cristã; radicalizam o dízimo, ao mesmo tempo em que fazem de tudo em suas empresas para fraudar o imposto de renda. E muito mais. 

A bênção de Abraão, que não é apenas a salvação pela fé, mas também a dádiva do Espírito Santo, foi trocada pela vida que temos sob a Lei. Consequência? Novamente não temos espaço para a fé. Não cultuamos uma vida de sensibilidade à voz do Espírito que deseja nos moldar em santidade e nos fazer voltar para o mundo e ao próximo em amor. Não experimentamos a ação de poder do Espírito, seja em conversões, em corações sensibilizados, seja em curas e portentos. Não conseguimos viver como comunidade dos últimos tempos, escatológica, habitada e plenificada pelo Espírito Santo.

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