quarta-feira, 20 de junho de 2012

Transformações Narrativas


QUARTA-FEIRA, 16 DE FEVEREIRO DE 2011


Em outra mensagem, descrevi as principais características do conceito semiótico de narratividade. Permitam-me, nesta, analisar aspectos da narratividade do livro de Rute, já dialogando com as leituras de Paulo e Leonel. 

O “estado inicial” dos actantes narrativos (Rute e Noemi) é um estado de desalento, desânimo, perda radical (a morte dos homens, em uma sociedade agrícola patriarcal, é a maior desgraça econômica que pode atingir uma mulher – pois ela perde a terra, perde o nome, perde o teto Rute 1,1ss). O “estado final” retrata uma completa inversão do estado inicial: Rute se casa, Noemi ganha um filho, e o gurizinho será o ancestral do mítico rei Davi (“mítico”, no sentido de que ele se torna, para alguns escritos do AT, modelo/padrão de realeza segundo a vontade de YHWH).

Se descrevemos apenas essa transformação, o texto parece ter se tornado banal. Mais uma estorinha sobre mulheres que perderam tudo, mas deram a volta por cima e recuperaram o que haviam perdido. Mais uma estorinha patriarcal que infantiliza as mulheres e as subordina aos maridos. Entretanto, quando prestamos atenção às ações e transformações que fazem o livro sair do estado inicial e chegar ao seu estado final, percebemos que há “algo mais” nessa estorinha.

A primeira característica que me chama a atenção é a de que os actantes narrativos são, na dimensão discursiva do texto (a “narrativa” narrada ...), asmulheres. Os homens são sujeitos subordinados às mulheres na trama textual: os primeiros homens apenas entram na história para morrer; Booz nunca toma a iniciativa, é sempre levado a agir por Rute (e Noemi), e, quando age, age seguindo o costume local. O parente (sem nome) que poderia se casar com Rute, apenas desiste do dever; os conselheiros apenas atestam o negócio entre Booz e o “fulano” (eles também oferecem um voto de sucesso a Booz, sucesso que dependerá dos filhos que Rute lhe der...).

A segunda característica que me chama a atenção é a sagacidade e sabedoria de Rute. Ela é a “cabeça do casal”, mas sempre age de modo que tal fato não seja percebido – é obediente a Noemi, é submissa a Booz. Até mesmo no ato de seduzir a Booz, o texto narra o evento de modo a ocultar a sensualidade da cena. Eu sei que a interpretação do “deitar aos pés” de Booz é contestada e muitos exegetas não aceitam que a expressão tenha conotação sensual. Mas, me pergunto: se Rute só se deitou aos pés (literalmente) de Booz, porque o narrador descreve a cena com requintes de sutileza: ”ela dormiu a seus pés até de manhã, e se levantou quando as pessoas ainda não se reconheciam (pois Booz não queria que soubessem que a mulher tinha ido à eira” (3,14 Bíblia do Peregrino)? Poderíamos comparar o “mistério de Rute 3,14” ao “mistério da mancha vermelha” de Chagall.

[Não consigo resistir à tentação... Preciso citar um Comentário Bíblico: "Y
aunque Boaz no quiere que se divulguen noticias acerca de la visita de una mujer... a la era (vv. 11 y 14), después del diálogo a media noche, él invita a Rut a volverse a acostar a sus pies “hasta la mañana” (v. 13b). Y los dos volvieron a dormir, sin que nada indecoroso pasara. Pareciera que ya habían oído de la verdad que dice: AMAR ES ESPERAR." (Comentário Bíblico Mundo Hispano)]

A terceira característica que me chama a atenção é a moldura “patriarcal” da estória narrada. É tentador dar um jeito nessa moldura mediante a cirurgia crítica – inventar uma narrativa “feminista” de fundo, recoberta por uma editoração “patriarcal” e “monárquica”. Assim, as contradições e tensões da estória desaparecem, e se pode fazer uma classificação simples e segura do gênero textual, do lugar social e da autoria. Simples e segura, mas apenas banal. Classificação que mantém os binarismos fáceis e sem sentido – “feminino” versus “masculino”; “popular” versus “monárquico”; “campo” versus “cidade”; etc. A estorinha de Rute, porém, não se submete a esses binarismos. É tensa, nervosa, contraditória. É como a vida da gente!

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