quarta-feira, 20 de junho de 2012

O livro de Rute - quem conta a história?


SEGUNDA-FEIRA, 14 DE FEVEREIRO DE 2011


Depois das mensagens e imagens instigantes, inicio minha análise do livro de Rute com uma questão de base. Quem conta a história?

A pergunta nem sempre é feita, mas é sempre subentendida. Afinal, é necessário que a história chegue a nós pela mediação de uma voz. Essa voz é a do narrador.

Nos livros bíblicos normalmente temos um narrador que apresenta a narrativa em terceira pessoa. Ou seja, é alguém que diz: "fulano morava em tal lugar [...] Ele foi para a cidade [...] Uma pessoa se proximou dele [...]". 

Isso quer dizer que esse tipo de narrador narra de fora da história. É como se ele visse o desenrolar do enredo e o apresentasse aos leitores. Uma vantagem desse tipo de narrador é que ele não está preso ao tempo, ao espaço e ausente da intimidade dos personagens. Pelo contrário, ele pode se locomover no tempo (pense no narrador do Gênesis que se desloca em meio a grandes porções temporais), pode estar em vários lugares (como faz o narrador nos evangelhos ao acompanhar Jesus para o deserto, para o pináculo do tempo, e para um alto monte), e pode, inclusive, penetrar na mente e no coração dos personagens para dizer-nos o que pensam e o que sentem (como, por exemplo, no caso de Jesus, quando o narrador nos diz que ele "não confiava naqueles que viam seus sinais" [Jo 2.24], e quando, diante da dureza do coração dos religiosos frente à cura do homem com a mão ressequida, o narrador revela os sentimentos de Jesus: "indignado e condoído" [Mc 3.5].

A característica principal desse narrador é que ele fornece aos leitores informações privilegiadas, que muitas vezes são desconhecidas dos personagens. Isso traz consequências para a interpretação dos textos.

A partir desse momento passo a analisar o narrador no primeiro capítulo de Rute. 

Lembro que usarei para este estudo a BÍBLIA Sagrada. Edição revista e atualizada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblia do Brasil, 1999.

O narrador inicia fornecendo a nós, leitores, informações básicas para a compreensão do livro no v. 1: 

- contexto histórico em que ocorrem os eventos - "Nos dias em que julgavam os juízes";
- o que move inicialmente o desenvolvimento dos fatos - "houve fome na terra";
- os personagens iniciais - "um homem de Belém de Judá, sua mulher e seus dois filhos";
- a primeira ação dos personagens - "saiu [o homem, sua mulher e seus dois filhos] a habitar a terra de Moabe". 

A partir do v. 2 o narrador introduz dados mais específicos em relação ao v. 1:

- define o nome do homem, de sua mulher e de seus dois filhos; 
- inicia o desenvolvimento do enredo ao esclarecer que o plano de ir para Moabe em função da fome foi bem sucedido - "vieram à terra de Moabe e ficaram ali".

A partir do v. 3 o ritmo do enredo é acelerado ao introduzir uma série de infortúnios que se sobrepõem às bênçãos:

- Elimeleque morre, ficando a viúva Noemi e seus dois filhos (v. 3);
- Os filhos se casam com moabitas - Orfa e Rute - o que permite uma certa estabilidade à família, uma vez que eles permanecem na terra por mais 10 anos (v. 4);
- Os filhos também morrem e o narrador especifica que Noemi ficou "desamparada" sem o marido e os dois filhos (v. 5);
- O narrador nos informa ainda que Noemi ouvira que Deus havia se lembrado do seu povo, dando-lhe pão em sua terra, e decide voltar para lá com as duas noras (v. 6);
- O narrador explicita que, de fato, elas começaram a viagem de regresso, mas que no caminho Noemi se dirige às noras (v. 7).

Nesse ponto é necessário parar por um instante. Dos vs. 1 ao 7 temos a voz do narrador apresentando e definindo aspectos da história. A partir do v. 8 até 17 temos o diálogo das mulheres, com poucas intromissões do narrador. Vamos analisar esse bloco.

- A fala de Noemi está nos vs. 8 e 9a. Parece que ela alterou sua disposição inicial de levar as noras, visto que diz a elas: "Ide, voltai cada uma à casa de sua mãe". Afinal, naqueles tempos uma mulher viúva e sem família estava desamparada. Três viúvas apenas intensificava a situação. Ela deseja que as duas sejam abençoadas assim como abençoaram a seus maridos, inclusive que se casem novamente - "sejais felizes, cada uma em casa de seu marido" (v. 9). Casar, nesse contexto, significa reaver a segurança de um lar; 
- Nos vs. 9b e 10 há a reação, rápida, das noras, ao dizerem que iriam com Noemi para sua terra;
- Noemi, no entanto, insiste, afirmando que não tinha mais filhos para oferecer a elas, e que sentia-se culpada pela desgraça delas, reconhecendo que o Senhor havia "descarregado contra mim a sua mão" (vs. 11-13);
- Uma delas, Orfa, aceita as palavras da sogra e retorna para seu povo. Rute, contudo, reafirma o propósito de seguir com ela e de assumir o Deus de Noemi como seu Deus, qualquer que fosse o seu propósito (v. 14-17).

Nesse momento volta a voz do narrador afirmando que Noemi reconhece a disposição de Rute e aceita que ela a acompanhe. Ambas chegam em Belém, de onde saíra inicialmente a família de Noemi (v. 18-19). O narrador introduz nova série de falas a partir do final do v. 19.

- Embora toda a cidade se comovesse, é a fala das mulheres que é relatada: "Não é esta Noemi?" Ao que ela responde dizendo que não se chamava mais Noemi, mas sim "Mara", esclarecendo que esse nome significa "grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso" (v. 20);
- No verso seguinte (21) ela explica seu novo nome. Ela partir ditosa, mas Deus a fez voltar pobre. O Todo-Poderoso a tem afligido.

O capítulo finaliza com a voz do narrador. Ele fecha o bloco com um resumo: "Noemi voltou de Moabe para Belém com sua nora". E faz uma ponte com o próximo capítulo: "chegaram a Belém no princípio da sega da cevada". 

Este post já está bem grande. Finalizo com algumas perguntas que retomarei na próxima mensagem:

- Qual a importância e o papel das vozes do narrador e dos personagens no texto?
- Como cada uma delas apresenta a ação de Deus?
- Há alguma contradição entre essas duas vozes?

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